Foto: Tânia Rego/Arquivo/Agência Brasil
Conhecido como a “Constituição das redes”, o Marco Civil da Internet chega aos dez anos questionado sobre a sua eficácia para lidar com problemas como a desinformação e sob a mira de ministros do STF (Supremo Tribunal Federal).
O texto, no entanto, é defendido por entidades e acadêmicos que estudam a internet e as redes sociais —que se opõem à derrubada de normas previstas na lei, mas apontam que podem ser criadas exceções às regras para a moderação de conteúdo pelas big techs.
A discussão se acirrou com os ataques do empresário Elon Musk, dono do X (antigo Twitter), ao ministro do STF Alexandre de Moraes, que provocou movimentações de uma ala da corte para rever o conteúdo do texto.
Outro motivo que deu força ao Judiciário foi o recuo do Congresso em relação ao chamado PL das Fake News.
O Supremo discute retomar julgamento sobre a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil. O item exige ordem judicial de exclusão de conteúdo para responsabilizar companhias de tecnologia por conteúdos de terceiros publicados em suas plataformas.
As exceções são casos de nudez não consentida ou de violação de propriedade intelectual.
No último dia 10, o decano da corte e um dos mais influentes politicamente, Gilmar Mendes, defendeu que a segurança da internet só seria possível “com a elaboração de uma nova legislação”.
“Ao revisitar a recente história nacional, não é preciso muito esforço para concluir que o Marco Civil da Internet atualmente em vigor —com o qual esta corte tem um encontro marcado em breve — tem-se revelado muitas vezes inábil a impedir abusos de toda a sorte”, afirmou, em discurso de desagravo a Moraes.
Depois do discurso de Gilmar, o relator de uma das ações que tratam do Marco Civil, Dias Toffoli, disse em nota que até junho deste ano os autos deveriam ser deixados à disposição para julgamento.
Caberá ao presidente do tribunal, Luís Roberto Barroso, pautar o caso. Internamente, porém, há uma divisão na corte a respeito do tema, e pode ser que ele só vá a plenário caso haja um consenso maior.
O diretor executivo do InternetLab, centro de pesquisa sobre direito e tecnologia, Francisco Brito Cruz, afirma que a derrubada do artigo 19 não resolveria o problema da desinformação nas redes.
Para ele, uma mudança no atual regime de responsabilização das big techs pode incentivar as empresas a, em vez de investirem em melhorias na moderação, apenas centrarem seus esforços na contratação de advogados que farão cálculos dos riscos jurídicos de uma indenização.
Cruz afirma, no entanto, que “a pior das hipóteses é ter uma decisão de 500 páginas que ninguém consegue interpretar”. “Tem que ser uma decisão autoaplicável e que a tese esteja clara, e isso fica mais difícil se cada um votar de um jeito”, afirma.
Bia Barbosa, integrante do DiraCom (Direito à Comunicação e Democracia) e representante da sociedade civil no Comitê Gestor da Internet, também defende que o artigo 19 não deve ser derrubado, o que alteraria o funcionamento da internet na visão dela.
O artigo, diz, não trata especificamente de redes sociais, mas de “provedores de internet”, e envolve ferramentas consideradas intermediárias neutras, como as plataformas de publicações de sites —por exemplo, a WordPress.
Ela sugere a criação de uma “exceção em relação ao regime geral de responsabilidade do artigo 19 para redes sociais, ferramentas de busca e aplicativos de mensagens”.
“Essa exceção me pareceria claramente necessária de ser feita no caso dos conteúdos pagos impulsionados, porque as plataformas lucram com a distribuição desses conteúdos”, afirma.
No ano passado, em texto publicado na Folha, os idealizadores do Marco Civil manifestaram preocupação com discussões que propõem alterar a norma “de forma apressada e excludente”.
“O caminho para o aperfeiçoamento da regulação da rede no Brasil não passa pela supressão de elementos centrais do Marco Civil, mas sim pelo reconhecimento do seu papel como balizador das novas soluções regulatórias. Elas devem vir a partir dele”, disseram o advogado Ronaldo Lemos, que é colunista da Folha, Carlos Affonso Pereira de Souza e Sergio Branco, diretores do Instituto de Tecnologia e Sociedade.
No âmbito eleitoral, uma resolução aprovada pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral) em janeiro sobre propaganda eleitoral foi vista como uma norma que confronta diretamente com o Marco.
A resolução estabelece que as plataformas de internet serão solidariamente responsáveis “civil e administrativamente quando não promoverem a indisponibilização imediata de conteúdos e contas, durante o período eleitoral”.
A norma diz que precisam ser retiradas imediatamente, entre outros tópicos, postagens “antidemocráticas”, publicações com “fatos notoriamente inverídicos ou gravemente descontextualizados” sobre o processo eleitoral e “grave ameaça, direta e imediata, de violência ou incitação à violência” contra membros do Judiciário.
A regularidade da norma é contestada por defensores do Marco Civil e advogados especializados em tecnologia.
O principal processo que tramita no Supremo sobre o assunto trata de um caso concreto sobre remoção de um perfil do Facebook, mas a decisão incidirá em todas as ações similares do Brasil.
Nos autos, há ao menos 18 partes interessadas —os chamados amicus curiae, que podem opinar no processo sobre o tema.
Entre eles, big techs como o Google, Tik Tok e X (ex-Twitter), além do Instituto de Advogados de São Paulo, do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) e da Conib (Confederação Israelita do Brasil).
Em suas manifestações, a Wikimedia Foundation, entidade responsável pela Wikipedia, sugere que, a eventual reforma no Código Civil da Internet deveria obrigar as big techs a ter “procedimentos eficazes para lidar com diferentes tipos de conteúdo nocivo, levando em conta os diferentes modelos de moderação de conteúdo eficazes que podem existir”.
Para a Wikimedia, isso é mais eficaz do que “especificar que o provedor de aplicativo deve realizar a remoção de conteúdo ou se responsabilizar pelo conteúdo de terceiros que hospeda”.
Um dos motivos para o Marco Civil da Internet ter sido aprovado em 2014 e sancionado pela então presidente Dilma Rousseff (PT) foram as denúncias de espionagem eletrônica dos EUA sobre o Brasil.
“Esses fatos são inaceitáveis e continuam sendo inaceitáveis, atentam contra a própria natureza da internet”, discursou Dilma ao sancionar a lei. “Os direitos que as pessoas têm offline também devem ser protegidos online.”
A assinatura ocorreu no dia 23 de abril de 2014 após aprovação rápida no plenário do Senado, depois de um mês de discussão —na Câmara, o projeto demorou pouco mais de três anos para ser aprovado. A lei passou a valer um mês depois.
Com informações de José Marques/Folhapress -> Política Livre